quinta-feira, 30 de agosto de 2007

ESCREVER COM SANGUE

(Para Nietzsche)

a palavra macia
enveluda pelos pelos da mão
vermelha-se
luva leve
lava quente

(Fabio Rocha)

terça-feira, 28 de agosto de 2007

CORES

Fazia frio. Subiu a montanha, com o sol branco refletido na neve, tão branco que sentia como se lhe purificasse a alma. Mas sentia falta do verde ali, do verde das árvores que balançavam lentamente com o vento, na frente da casa de sua infância, como um calmante símbolo da perenidade: acontecesse o que acontecesse na sua vida, as mesmas árvores continuavam ali, dançando ao vento, acarinhando os ares, servindo de lar para os pássaros que teimavam em sobreviver na cidade grande.

Pensando bem, durante toda a sua vida foi assim, esta foi sua maldição e seu tesouro: estava dividido. Em cada mínima situação, exatamente como agora. A paz do branco trazia a falta do verde. Se estivesse no meio do verde, teria saudades do branco. Mas essa eterna insatisfação tinha como positividade o mover-se adiante, por sempre querer mais.

Pensava ainda nas palavras de Portus, do dia anterior, na cabana de madeira onde se hospedaram. Estava ao lado da lareira, fumando seu charuto prazerosamente e olhando as estranhas formas de sua fumaça. Engraçado como mesmo relaxado, como nesses momentos, ele mantinha um ar misterioso e elegante.

“O que interessa da filosofia é o que você usa dela na sua vida prática. Por exemplo, saber e sentir que a vida sempre existiu e sempre existirá, desde antes de se nascer e mesmo depois de se morrer. Só pode ser considerado válido se você MUDA após perceber isso. A maioria só repete pensamentos antigos sem deixar que isso toque em profundidade sua maneira de ser.”

Seus pés começavam a doer, mesmo protegidos com tantas meias e botas. Frio demais. O vapor de sua respiração ofegante se misturava ao do charuto de Portus. Precisava subir mais. Chegar ao topo. Concluir aquilo.

Buscou energias não sabe de onde, sentiu o vento novamente como uma carícia em vez de inimigo e seguiu subindo. Se pensasse na pequena vitória de cada passo, em vez de concentrar toda a felicidade na chegada ao cume e a bela vista, conseguiria. Outra filosofia para a vida...



***


Ísis ouvia o som do rio, sereno, constante, deitada ao lado da margem. Às vezes se virava para molhar os dedos das mãos e brincar um pouco com a água gelada.

Quanto tempo esperou por aquele momento... Paz. Largar tudo e fazer da vida eternas férias. Foi um risco grande, mas toda mudança assim é um salto no escuro. Mas ela decidiu arriscar. Pegou o dinheiro que tinha juntado trabalhando na cidade grande, no ritmo extremamente rápido e antinatural da cidade grande, e se mudou pro campo. O movimento contrário à maioria da população em todo o planeta. Mas não se importava. Pra onde essas maiorias estavam levando o planeta, com sua postura excessivamente masculina, consumista, exploratória e racional?

Ali era seu lugar. Sentia o sagrado ao alcance das mãos e o prazer no momento presente, não num futuro que nunca chega.

Seu namorado também ficou pra trás. Lembrou dele ao notar o sol começando a se perder atrás das montanhas. Era momento mais bonito do dia: o crepúsculo. Admiraram muitos deles juntos. Guardou as lembranças boas dos dois com carinho, mas era preciso admitir que, em sua alma, já havia acabado aquela magia tão necessária. Para ela, amar alguém não significava um compromisso para toda a vida, mas um compromisso para com o amor apenas. E aceitava bem isso.

Percebeu seus olhos fixando o olhar num ponto vermelho caindo montanha abaixo. Parecia um tombo feio. Correu para perto, mais preocupada que curiosa.



***


Lucas sentiu que sua perna não estava mais lhe obedecendo. Um cansaço imenso. Depois mais nada. Só a escuridão. Sentiu-se como que mergulhando numa piscina de trevas, de águas plenamente negras. Era como se estivesse realmente afundando numa caverna antiga, perdida nos tempos. Lembrou-se de alguns fatos de sua vida, um cão querido de sua infância, o abraço da avó... Sabia que estava a um palmo de uma grande mudança. Profunda. E então, algo o puxou. Solavancos. Leve sensação de dor. E uma luz forte lentamente aumentava de intensidade. Sons. Voz de alguém. Gosto de sangue. Frio. Estava deitado na neve! E alguém lhe falava algo. Foi quando viu o rosto feminino de Ísis no meio da luz que lhe cegava. Sorriu.


(Fabio Rocha)

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

ESPANTO

a música triste
e romântica
que ouvi menino
foi meu primeiro toque
no assombro:

chorava
sem ter dor

(Fabio Rocha)

O silêncio dos intelectuais

Estava vendo agora o programa da TVE "O silêncio dos intelectuais" (aliás, TVE e TV Cultura são boas demais, se você selecionar os programas - recomendo também o "Recorte Cultural" e "Café Filosófico", respectivamente). O programa tratou da questão do poder da mídia. A TV, a tela do computador ou do celular ditam o que é o real. Os recortes instantâneos que não são nada além do que a percepção individual de alguém, ou o modelo padrão para esses meios midiáticos. Mas são confundidos pela maioria dos "espectadores" com a própria realidade... Um intelectual francês estava falando nesse programa que se você meciona o Zidane pra qualquer ser no mundo, ele é reconhecido, enquanto que um matemático francês extraordinariamente jovem e brilhante, vencedor da medalha Fields (equivalente ao Nobel de Matemática, entregue apenas de 4 em 4 anos) não se conhece em lugar nenhum. (Nem na internet achei esses dados direito...) O Zidane cabe na tela, cabe no jornal, cabe na copa transmitida ao vivo pro mundo todo... É visão. É padrão. Mas e a Matemática? Filosofia e poesia ainda há em raros programas de TV e nesse maravilhoso e democrático meio que é a internet... Mas Matemática talvez nem aqui. É puro pensar, "episteme" grega, longe da "doxa", sensação, em que estamos constantemente mergulhados, onde tudo passa rápido e pronto e dado. Não temos nunca tempo nem disposição para silêncio, para pensar sozinho, estudar profundamente algo e - claro - menos ainda para criar. Por isso também é que os intelectuais parecem silenciosos, segundo o programa. Não cabem nesse esquema de mídia, logo ficam quietos ou em guetos. A meu ver, eis aí o grande risco de quem pensa ou escreve ou faz matemática, de quem cria de maneira geral: falar para cada vez menos gente. E penso que esses guetos tendem a se estreitar, se encolher. Por isso gosto da Marilena Chauí, que fala mais claro que a maioria (no programa, inclusive). Não é preciso usar um vocabulário tão cheio de requintes como a maior parte dos intelectuais faz... Acho que o mesmo problema há na poesia mais "aceita" pelas editoras hoje. Por isso, tende a só ser apreciada por poetas. Tento fugir desses "hermetismos pasquais" nas minhas. Apóio o retorno ao mais popular e simples, sem ser simplório, como Quintana na poesia, Beethoven na música clássica, Chauí na Filosofia. Mas sem os excessos também... Cabe aqui a "justa medida" Aristotélica ou o "caminho do meio" do Buda. As auto-ajudas imbecis são tão claras quanto as cabeçadas do Zidane, mas aí já começa a faltar a profundidade... ;)

(Fabio Rocha)

domingo, 19 de agosto de 2007

ENOBRECE O HOMEM

O meu trabalho
não tem
salário

O meu trabalho
não é de segunda a sexta
nem paga hora-extra

(Noto agora como é feia
a palavra trabalho)

O meu trabalho
não tem chefe
nem hierarquia

O meu trabalho:
a poesia

(Fabio Rocha)

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

OFF OOOOOOOOOOMMMMM

há épocas
em que o mundo é turvo
escuro
imundo
até
que quase chego a
perceber
que é meu olhar
que tem que voltar a ver

(Fabio Rocha)

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

BOM DIA

acordar
com a rádio evangélica do vizinho negador às sete da madrugada
me faz ligar
Pearl Jam no volume máximo
para lembrar
que ainda há
Vida no planeta

(Fabio Rocha)

terça-feira, 14 de agosto de 2007

EVOLUÇÃO

rede de idéias
redemoinhos
Quixotes
Pixotes não resolvíveis
calam a cola das ruas
dentre escarros e carros
de vidros
fechados
agora
blindados

(Fabio Rocha)

ANSIEDADE CRIATIVA

um colibri sai da boca de um gato em meu peito
e voa

(Fabio Rocha)

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

SUPERFICIALIDADE PROFUNDA

Contra a superfície?
Nada.

Ou nadar?

Nadar pro fundo
profundo
frio
e só?

(Fabio Rocha)

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

PORTO INSEGURO

na luta tardia
contra os dias iguais
crio e quebro rituais
de etérea monotonia

(Fabio Rocha)

terça-feira, 7 de agosto de 2007

STRESS

Há uma infinidade de bússolas
apontando o mesmo
e a maioria
(cega?)
segue:
juntar dinheiro e não sonhar.

Interessante notar
que ao final da vida
todos desse rebanho nietzscheano
terão como única certeza
o seu tempo se esgotando...

(Fabio Rocha)

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

PAIXÃO

um roçar de dedos
peito ardente
arfante mão

voz
chama
em chamas

erupção

sem opção:
incêndio
bento

lento
pássaro
de fogo

fato:

morrer estátua
e renascer canção
de brasas

pela manhã
um novo sol
e asas

(Fabio Rocha)

A morte de Sócrates, 1787 - pintura de Jacques Louis David

ARBÓREO

há uma arte
de olhar
pra árvores

exige tempo
e silêncio
(dentro e fora)

semeia
leveza

(Fabio Rocha)

domingo, 5 de agosto de 2007

ÁGUA E SENTIMENTO

frio demais pra ver o mar
apenas o sinto
lá fora
no escuro
aqui dentro

(Fabio Rocha)

DA IMPORTÂNCIA DOS PARÊNTESES

vivemos numa época
em que jornalistas
(e não poetas)
definem o mundo

(Fabio Rocha)

VIAGEM DE VOLTA

olho uma beleza
em dias mais feios
olho uma vontade
rimo uma certeza
mas querer é salto
mas querer é muito
instável

fecho a janela

(penso
logo
não pulo)

(Fabio Rocha)

OLHANDO CÉUS

quantos passos
até
pássaro?

(Fabio Rocha)

DÉCIMA

A Beethoven

acordar aos acordes
da sinfonia pós-morte
renascer
dançando mãos
por violas curvas
inaugurais
ouvindo a nona
em violinos
violentos

(Fabio Rocha)