terça-feira, 28 de agosto de 2007

CORES

Fazia frio. Subiu a montanha, com o sol branco refletido na neve, tão branco que sentia como se lhe purificasse a alma. Mas sentia falta do verde ali, do verde das árvores que balançavam lentamente com o vento, na frente da casa de sua infância, como um calmante símbolo da perenidade: acontecesse o que acontecesse na sua vida, as mesmas árvores continuavam ali, dançando ao vento, acarinhando os ares, servindo de lar para os pássaros que teimavam em sobreviver na cidade grande.

Pensando bem, durante toda a sua vida foi assim, esta foi sua maldição e seu tesouro: estava dividido. Em cada mínima situação, exatamente como agora. A paz do branco trazia a falta do verde. Se estivesse no meio do verde, teria saudades do branco. Mas essa eterna insatisfação tinha como positividade o mover-se adiante, por sempre querer mais.

Pensava ainda nas palavras de Portus, do dia anterior, na cabana de madeira onde se hospedaram. Estava ao lado da lareira, fumando seu charuto prazerosamente e olhando as estranhas formas de sua fumaça. Engraçado como mesmo relaxado, como nesses momentos, ele mantinha um ar misterioso e elegante.

“O que interessa da filosofia é o que você usa dela na sua vida prática. Por exemplo, saber e sentir que a vida sempre existiu e sempre existirá, desde antes de se nascer e mesmo depois de se morrer. Só pode ser considerado válido se você MUDA após perceber isso. A maioria só repete pensamentos antigos sem deixar que isso toque em profundidade sua maneira de ser.”

Seus pés começavam a doer, mesmo protegidos com tantas meias e botas. Frio demais. O vapor de sua respiração ofegante se misturava ao do charuto de Portus. Precisava subir mais. Chegar ao topo. Concluir aquilo.

Buscou energias não sabe de onde, sentiu o vento novamente como uma carícia em vez de inimigo e seguiu subindo. Se pensasse na pequena vitória de cada passo, em vez de concentrar toda a felicidade na chegada ao cume e a bela vista, conseguiria. Outra filosofia para a vida...



***


Ísis ouvia o som do rio, sereno, constante, deitada ao lado da margem. Às vezes se virava para molhar os dedos das mãos e brincar um pouco com a água gelada.

Quanto tempo esperou por aquele momento... Paz. Largar tudo e fazer da vida eternas férias. Foi um risco grande, mas toda mudança assim é um salto no escuro. Mas ela decidiu arriscar. Pegou o dinheiro que tinha juntado trabalhando na cidade grande, no ritmo extremamente rápido e antinatural da cidade grande, e se mudou pro campo. O movimento contrário à maioria da população em todo o planeta. Mas não se importava. Pra onde essas maiorias estavam levando o planeta, com sua postura excessivamente masculina, consumista, exploratória e racional?

Ali era seu lugar. Sentia o sagrado ao alcance das mãos e o prazer no momento presente, não num futuro que nunca chega.

Seu namorado também ficou pra trás. Lembrou dele ao notar o sol começando a se perder atrás das montanhas. Era momento mais bonito do dia: o crepúsculo. Admiraram muitos deles juntos. Guardou as lembranças boas dos dois com carinho, mas era preciso admitir que, em sua alma, já havia acabado aquela magia tão necessária. Para ela, amar alguém não significava um compromisso para toda a vida, mas um compromisso para com o amor apenas. E aceitava bem isso.

Percebeu seus olhos fixando o olhar num ponto vermelho caindo montanha abaixo. Parecia um tombo feio. Correu para perto, mais preocupada que curiosa.



***


Lucas sentiu que sua perna não estava mais lhe obedecendo. Um cansaço imenso. Depois mais nada. Só a escuridão. Sentiu-se como que mergulhando numa piscina de trevas, de águas plenamente negras. Era como se estivesse realmente afundando numa caverna antiga, perdida nos tempos. Lembrou-se de alguns fatos de sua vida, um cão querido de sua infância, o abraço da avó... Sabia que estava a um palmo de uma grande mudança. Profunda. E então, algo o puxou. Solavancos. Leve sensação de dor. E uma luz forte lentamente aumentava de intensidade. Sons. Voz de alguém. Gosto de sangue. Frio. Estava deitado na neve! E alguém lhe falava algo. Foi quando viu o rosto feminino de Ísis no meio da luz que lhe cegava. Sorriu.


(Fabio Rocha)

Um comentário:

Iaiá disse...

Bom demais! De ler, e reler, e ler novamente... :D