O Outro
Fabio Rocha
Copyright © 2005 por Fabio Rocha - revisado em 2014
Registro EDA – Biblioteca Nacional:
Nome(s) do(s) Autor(es): FÁBIO JOSÉ ALFREDO SANTOS DA ROCHA
Título da Obra: O OUTRO
No. Registro da Obra: 347810
Livro: 640
Folha: 470
Data de Registro: 25/7/2005
Gênero da Obra: POESIA
Obra Publicada: Não
Título original: O Outro
Editoração eletrônica: Fabio Rocha
Endereço eletrônico:
http://www.fabiorocha.com.br
Sangro mas não choro
Rubens da Cunha
Fabio Rocha é um poeta surpreendente. Dono de uma produção contínua, publicada tanto em livros reais, quanto em livros virtuais. Objetos diferentes para comportar uma obra poética que se diferencia pela crueza direta da coloquialidade: “caralho, estou fazendo um poema” por aquela simplicidade aparente, pois seus textos estão agarrados no cerne das questões cotidianas: “Estou amargo como o aspargo que não comi”.
Neste “O Outro” há uma certa revolta, provocada pelo indivíduo preso na cidade gigante: “O que eu quero tendo raiva dessas manifestações mínimas que me aparecem milagrosamente numa cidade sem amigos, de amigos distantes, de amigos ocupados, de nenhuma amiga?” A solidão imposta pelo ambiente conturbado é combatida por Fabio com ironia, um preciso humor amargo, mas nunca negro ou agressivo. O humor dos poemas manifestam uma vontade intrínseca de que tudo poderia ser diferente, mas infelizmente não é.
Todas as relações humanas, as desconexões entre os seres, as dúvidas quanto à própria função de poeta neste caos, perpassam este livro, feito estiletes invadindo nossas verdades estabelecidas.
Fabio não considera sartrianamente os outros como inferno. Em certo momento diz “eu tento ser perfeito para o outro” e nesta tentativa (a tentativa de todos nós) erra e acerta, escorrega e reclama. Humano demasiado que é, expõe o os joelhos ralados no poema, imiscuindo o eu-Fabio Rocha, o eu-lírico, o eu-leitor numa coisa só. Mesmo quando se tranca, o mundo externo retém toda a sua atenção, a sua necessidade de ser compreendido. Em Umbral, um dos mais belos poemas do livro, percebe-se esta dualidade: eu x mundo.
Estou trancado.
Lá fora
leões
que amo.
A casa encolheu
ou eu que cresci?
Estou armado até os dentes.
Eles têm fome.
Ouço seus rugidos.
(Algo em mim quer ser um monstro.)
Cansado de ferimentos
olho para a porta
a chave pesando a mão.
O homem sendo diferente - a maldição da sensibilidade - deseja entre parênteses ser um monstro, pois lá fora estão os leões que ama, lá fora está a vida que o seduz e repele, “suicida sem coragem”.
Neste percurso cotidiano, de frieza, de mundo em guerra, os poemas vão dialogando com outros autores: Drummond, Cecília, Cazuza, vão tentando entender a força descomunal da contemporaneidade consumista, alarmista, indiferente: “o cotidiano me cospe me corta me cota em minhas costas o peso do não ser”, ao mesmo tempo em que busca soluções: “É parando que se chega perto de ser você mesmo” e no meio de tudo tenta convencer o labirinto que há firmeza e vontade.
No alto desta poética afetada pelo mundo externo, que busca diálogos interpessoais com “morcegos absurdos”, o poeta grita: “sangro mas não choro”. Estaria mentindo ou dizendo a verdade? Descubra você, invadindo este “O Outro” descobrindo-lhe as artimanhas e a beleza.
Rubens da Cunha
http://www.casadeparagens.blogspot.com
FOGO: ARTIFÍCIO
“Você sai de perto
eu penso em suicídio”
Cazuza
(Para Viviane Marques)
A paixão, chama de um gato
(cheio de carrapatos)
corre por dentro em mim sem botas
renovando-se, repetindo-se, crescendo
com o Bolero de Ravel
procurando um canto calmo
para explodir
num orgasmo alto
e me levar com ela
e me lavar com ela.
19/06/04
SOLTEM MEU BRAÇO
“Hoje eu acordei com medo, mas não chorei
nem reclamei abrigo.
Do escuro, eu via um infinito sem presente
passado ou futuro.”
Cazuza
Sou aquele
dos grandes pensamentos
filosófico-existenciais.
Que se perde
em palavras
e sonhos altos demais.
No entanto
no básico
cotidiano, simples, real, abominável
sou só
(suicida sem coragem).
22/06/04
HOMEM: PÁSSARO
Há um ninho torto
que faço
em desalinho em minha mente
e passo
simplesmente ao acaso das feias tranças de fora
(espantando amigas formigas ambíguas que não como nem saem de perto)
espasmos
de um lar que duramente a mente faz
(e facilmente se desfaz)
e me faz bem
quente, seguro e meu
dentro.
16/07/04
SILENCIOSO FRIO
Estou amargo
como o aspargo
que não comi.
25/07/04
NOVA FORMA DE VIDA
Pressa ou bebida ou imprudência
ultrapassagem ou derrapagem ou sacanagem
uma cambalhota duas cambalhotas
uma pirueta duas piruetas
ferro range
metal corta carne
osso entorta
cartilagem
estalo
escuro.
Silêncio imundo.
Se o mundo se move
se a perna não se move
se a morte se move
se a vida se vai
não se sabe.
O homem-carro
(aracnometalóide antropofagis)
está só
e agora não tem pressa de chegar.
Seus olhos grandes de medo
não vêem luz no túnel do fim.
10/08/04 - O trânsito segue matando mais que qualquer guerra e seguimos usando carros.
NOTURNO
A Mozart e Artur da Távola
Não, não nos basta
o chão.
Por isso, é preciso
vestir-se de estrelas
e cavalgar o sonho
no ritmo do divino.
Esmagados contra a terra
pela grave e forte gravidade
voltamos a face para o céu.
Na alma humana
cabe o universo infinito.
14/08/04
ILLUMINATA
O silêncio da tarde me incomoda.
O silêncio do tarde me arde.
Vou com o vento
coração aberto
carteira vazia
mãos imperfeitas
imaginando o toque da alvorada.
24/08/04
UMBRAL
Estou trancado.
Lá fora
leões
que amo.
A casa encolheu
ou eu que cresci?
Estou armado até os dentes.
Eles têm fome.
Ouço seus rugidos.
(Algo em mim quer ser um monstro.)
Cansado de ferimentos
olho para a porta
a chave pesando a mão.
08/09/04
SEM TÍTULO
Tenho tentado. Ando pelo quarto salgado e não acho o que procurar. Tenho tentado. O tempo, sem passatempo, passa lento. Mas tenho tentado.
11/09/04
SURPLUS
De vez em quando o mundo se divide em tantos mundos que me acho imundo irresponsável adulto demais para tanta indecisão. Sobra idade cronológica, sendo o tempo relativo... Sim, eu vi o documentário Surplus no GNT nesta data querida. Sim, pregava o anticonsumismo como eu um dia preguei nas paredes imaginárias de revoluções de papel que deste não saem. Sim, mas por que isso ainda me toca, me faz criança, me chora, me morde, me culpa? Eu que tinha desistido de pregar o inútil e crescer na moeda... Eu, que briguei com o ócio e fiz as pazes com o Marketing pela sobrevivência de meu ego num possível futuro apartamento próprio meu meu meu onde culpas por ser um parasita familiar de quase trinta na casa paterna e ainda sem emprego fixo de oito horas diárias não entrariam. Não entrariam... No entanto, ainda tateio no quarto não meu com colchonetes para a yoga que não faço atrapalhando a passagem. Também não tenho meditado... Sobra tempo. Que vai ser quando crescer? Drummond ecoa nessa mente velha de criança. Que vai ser quando crescer? Assistente de marketing, Mestrado em Literatura Brasileira, concurso público, poeta, psicanalista futuro, auxiliar administrativo, webdesigner, poeta, contista, ufólogo passado, poeta, desconfiado, quase tarólogo, perdido e (poeta) mal pago. Tateio o ato que de fato eu deveria mas não me conheço. (Nem sei mais se escrevo prosa ou poesia ou porcaria.)
17/09/04
TRÓIA
“Todo dia é dia de viver.” – Lô Borges
Eu subi no cavalo.
Ninguém poderia tê-lo feito em meu lugar.
Eu subi no cavalo
por mim.
Não importa como
não importa quando
muito menos para onde.
Eu subi no cavalo
sob a lua e o sol
apertei as rédeas
sem culpa ou dúvida
celebrei sozinho
e segui o caminho.
Eu no cavalo
o vento novo
eu no controle
a estrada agora linda
o cavalo meu.
22/09/04
STELLA
A estrela
dança branca
no céu de sábado.
Silenciosa e futura.
29/09/04
JORNALZITO
Um homem-bomba sunita
destruiu a mesquita
lotada de xiitas.
07/10/2004
ENROLADOS
Stella e a toalha
Stella é a toalha
circular
eterna
infinita
toalha
girando girando...
Tão longe
quanto eu de mim.
Parecia um fim
mas não houve começo.
Parecia sim...
Stella girando...
Toalha branca...
Quando chove
também temos
que fazer a barba.
Stella girando...
(mais rápido que minha pressa)
Toalha branca...
Sinal vermelho...
Mãos indecisas...
Línguas travadas...
Na tomada
novamente
líquida fica a dor.
É, aceita a derrota
embainha a espada
e vai fazer a barba
com a marca registrada.
20/10/2004
VISTA DO ESCRITÓRIO
Sentado de frente à tela
com a janela ao lado
e o relógio multiplicado
leio
que “para escrever é preciso nunca estar satisfeito”.
Nessas tardes de sexta-feira
dá uma vontade danada
de explodir.
No entanto, algo me segura
se segura
e só sai da cadeia
por palavra.
Cura?
12/11/2004
COMO FICAR RICO, TER AMOR DE SOBRA E SER FELIZ EM POUCAS PÁGINAS
O quarto está claro. Luz branca, como uma cozinha. É bom estar num lugar claro numa noite tão fria. A luz parece afastar qualquer ausência. O som da chuva batendo nas folhas lá fora convida à introspecção. Leve. Calmo. É hora de começar um romance.
Escolhi o caminho errado em algum ponto... Ou vários. Mas estava disposto a achar o certo, custasse o que custasse. Ana me falava o dia todo sobre coisas que não interessavam minimamente. Cor de cabelo, o filho do artista que não era dele, uma bolsa que ela queria comprar mas estava cara... E eu sabia que ela queria que eu dissesse “Não faz mal, compra.”, mas não dizia. Fingia não saber. Olhava o tempo todo a sopa de ervilhas, que comia lentamente. Silêncio. Agora eu sabia, mesmo sem olhar o rosto de Ana, que ela estava se emputecendo. Em breve viria alguma reação disfarçada por parte dela. E eu fingiria não notar também, para evitar piores brigas. Mais alguns minutos de silêncio. A sopa estava boa. Ainda quente. Coloquei um pouco mais de azeite. Ana é que bancava a sopa, o azeite, a casa, tudo, mas mesmo assim queria uma aprovação para comprar a maldita bolsa, que eu - mesmo assim - não dava. Tentava entender porque não dizia logo o que ela queria ouvir, mas não dizia. Saboreava o silêncio e a sopa. Ela interrompeu:
- Você que acabou com o sorvete de morango, Felipe?
- Ana, quem mais poderia ter sido?
- Felipe, aquele sorvete era para a Rosineide! Ela adora sorvete de morango!
Era assim que ela tentava me diminuir, lembrando que sou um escritor fodido que não tem grana nem pra comprar sorvete de morango... E tenho que me sentar ali com meu amor morto e ouvir que o sorvete era para a empregada.
Não respondi. Minha vingança foi chupar a colher cheia de sopa ruidosamente. Ana foi pro quarto e se trancou. Ergui os olhos para a janela da cozinha. A lua devia estar sobre o mar em Copacabana, linda mesmo. Mas tudo o que eu via era a parede descascada do prédio vizinho, e ouvia os cães latindo na noite do subúrbio carioca.
Teria que trabalhar em algo que não gostava, pois o que gostava era ler, escrever e filosofar. Mas não conseguia sobreviver disso, nem aturar Ana, meu sustento.
Sim, eu sempre soube que o trabalho fora uma invenção católica, para cansar o corpo e livrá-lo dos “pecados da carne”, posteriormente reforçada pelo Protestantismo, com seus dogmas do tipo “mente vazia, morada do demônio”. Sem falar na praga lançada sobre Adão, quando expulso do Paraíso. Praga que agora parecia se abater sobre mim... Grandes portões se fechavam às minhas costas, enquanto a sopa esfriava a minha frente.
Sempre soube que a imensa maioria das pessoas trabalhava explorada por não ter outra opção de sobrevivência, e a minoria privilegiada o fazia para fugir de si, pelo status, pela necessidade consumista de comprar mais e mais... Raríssimas exceções viviam fazendo o que gostavam. Eu mesmo não consegui...
Sempre soube que as máquinas cada vez mais tiram emprego de trabalhadores com funções braçais. E, paradoxalmente, o nosso ensino (público e privado) cada vez mais prepara pior os futuros trabalhadores que, sem empregos braçais e despreparados para empregos mais “intelectuais”, aumentam as estatísticas de desemprego.
Eu sabia demais. Pra quê saber tanto, meu Deus? Houve um tempo em que pensei em ser professor para revolucionar esse sistema educacional de alguma forma extraordinária, ou pelo menos para dividir essa sabedoria com alguém. Mas não passei nem na prova para o Mestrado, com questões absurdas sobre termos herméticos. E, sem um título, não se pode fazer nada por aqui. Por mais que não se aprenda nada de útil numa graduação ou numa pós-graduação. Por mais que a grande atividade nesses locais seja a das máquinas de xerox.
Ah, leitor... Esse Felipe que sempre valorizava o ócio, a contemplação... Que criticava o uso atual da expressão utilizada nos campos de concentração nazista “O trabalho liberta”... Queria se libertar. E teria que se libertar pelo trabalho nazista, pelo trabalho alienado, pelo trabalho sem paixão, pelo trabalho em troca apenas de um maldito salário.
Ana, em seu quarto, organizava os armários, lotados de roupas em excesso. Após isso passaria uns dez cremes e tomaria uns quinze remédios para evitar a velhice inevitável.
Rosineide chorava com sua novelinha, e dormia, exausta, com a TV ligada.
Eu pensava sobre os males do mundo, filosofava longamente olhando e janela, deixava os pensamentos fluírem, se misturarem... No entanto, sempre voltavam a Rosineide. Raiva. Era raiva. Como a que senti no dia em que ela interrompeu minha meditação transcendental com risadas. Devia achar a posição de yoga ridícula, ou eu ridículo na tal posição. E agora, eu teria que guardar sorvete para aquela imbecil.
Aliás, ela vivia rindo. Com motivo ou sem. Onde achava felicidade, meu Deus? Uma anta sem visão de mundo, que não sabia anotar um recado quando atendia o telefone. Uma mula de carga que passava mais de oito horas por dia limpando, cozinhando, passando roupa, fazendo tudo para os outros. Que se tivesse meio neurônio já tinha se matado ou entrado para o tráfico de drogas. Que não tinha casa, que não tinha um amante, um amor, nada. De onde saíam aquelas infindáveis risadas de hiena?
Percebi que minhas mãos estavam espremendo as bordas da mesa, como que buscando o pescoço gordo de Rosineide. A imagem da desgraçada morrendo em minhas mãos me deu prazer. Poder.
E ainda tinha um radinho. Um maldito radinho de som péssimo, que eu era obrigado a ouvir quando ela limpava a casa. Quantos walkmans já dei para esta criatura? Perdi a conta. Ela não usava. Agradecia, guardava ou vendia, mas não usava. E a casa não sendo minha, o salário dela não sendo pago por mim, como exigir qualquer coisa?
Fui dormir no sofá, com uma pressão no peito. Morna. Não dormiria nem tão cedo.
Pela manhã, saí pela cidade. Desci a ladeira da maldita rua de Ana e vi a vizinha manca subindo. Senti tanta pena dela subindo sozinha que não a cumprimentei. Seu marido, Parmênides, tinha morrido. A vida é assim mesmo, cruel. Por onde andaria agora o companheiro da vizinha, seu apoio nas ladeiras da vida? O cara vivia na janela do primeiro andar do prédio vizinho, fumando e escarrando ostras no quintal da casa da Ana. E, sempre que estava ali, naqueles poéticos instantes, procurava desesperadamente alguém para puxar assunto. Eu saía meio abaixado, fingindo uma concentração que não tinha, se pudesse, saía de casa invisível quando ouvia sua tosse ou sentia sua presença ali na janela. Era um pigarro que queria dizer “Estou aqui, fale comigo!”. Eu fingia não ouvir. Mesmo assim, muitas vezes ele começava a falar. Falava do tempo, ou temas semelhantes e metade eu não entendia. Era meio grulha nosso vizinho falecido. Eu não compreendia e concordava e dizia ter pressa e saía. De quando em vez ele trazia uns aipins que tinha colhido num sítio, não lembro onde. Ana agradecia, Rosineide cozinhava e eu, Felipe, comia.
Não sei mesmo o nome da vizinha manca que sobe a ladeira com dificuldade, viúva, nesse frio ferrado que está fazendo ultimamente.
A cidade do Rio de Janeiro acordava. As padarias abertas, com trabalhadores se preparando para mais um dia, tomando café com leite em copos de vidro. Um borracheiro espantando pombos batendo com uma chave inglesa numa placa de proibido estacionar. Um vizinho do borracheiro reclamando pelo barulho, que havia lhe acordado. Ainda estava frio. Frio não combina com esta cidade maravilhosa que é o Rio de Janeiro, mas estava bem frio.
Caminhei pelas ruas sem destino certo, mas não consegui escapar da minha dúvida: será que terei que me juntar aos das padarias? Ou será que meu romance – este romance – me salvará? Pensava num título para ele... Num título que atraia o leitor. Tem que ser forte e universal. Talvez algo como “COMO FICAR RICO, TER AMOR DE SOBRA E SER FELIZ EM POUCAS PÁGINAS”. Foi quando encontrei com tio Sávio. Quase nos esbarramos. Ele seguia curvado, ombros preocupados, pasta cheia de obrigações sem sentido.
- Opa. Felipe? Saiu um concurso público pra prefeitura de Nova Iguaçu, você viu?
Este era o “tudo bem?” do tio Sávio. Ele era fiscal, odiava seu emprego e cismou que eu devia ser funcionário público, que teria mais garantias... Eu era bem preparado, tinha uma faculdade e passaria fácil em algum, insistia. Mesmo sabendo que eu já tentara vários e não conseguira. Depois disso ele sempre dava uma reclamada da vida e, por algum motivo estranho, eu sempre acabava falando demais da minha própria vida pra ele. Ele dava uns conselhos óbvios que me irritavam, mas eu sempre falava demais, reclamava demais, me colocando numa situação de alguém que parece querer ouvir conselhos. Quão complexas as relações humanas... Tio Sávio começou a aconselhar e ouvi. Senti um desconforto por ter que ouvir aquilo e desconversei, inventei um compromisso e ele foi encarar o seu metrô superlotado diário. Eu até que gostei de falar com ele. Sempre gostava, no fundo. Não sei, racionalmente, o porquê.
Dei outra olhada pra padaria, onde já havia um cara bêbado àquela hora da manhã, tropeçando e xingando alguém imaginário, com plenitude de gestos. Possivelmente falava para o vazio tudo que não podia falar para seu chefe, aquele capitalista que lhe explorava. A imagem de Ana me pareceu menos sombria, sua casa mais agradável e sua empregada apenas uma pobre companheira que não se alimentou bem na infância, que estudou mal nesse ensino miserável e não teve oportunidades melhores para evoluir como espírito de Deus. Coitada.
29/11/2004
PESCARIA
Com quantas linhas se faz uma lagoa?
16/12/04
CINZA ARCADE
Continuo tonto,
continuo tenso,
continuo, tento
seminu o sonho,
seminário e lenço
- semear, eu penso -.
Se não chego logo,
sinuoso dente
mastigando carne,
mascando chiclete
de mertiolate,
atacando marte
sem sair de dentro...
A tarefa é grande,
Atari não jogo,
isso não acaba
no mesmo lugar,
no mesmo lugar
sem passar de fase.
NOVO ANO NOVO
Este peito que não ama
(só paixões de artifício)
é tambor tentando libertar
o som invisível.
Explode
como se pânico
motivo fosse
para continuar a semear vermelho
sob a pele branca.
Lá em cima
um céu novo
estampado de estampidos e vésperas
cheio de histórias interrompidas
do ano passado a ferro.
Cato cacos e pistas decorridas
mas não há como entender
as sem razões do órgão
em seguir pulsando.
02/01/05
TRINTA
Trinta minutos para o fim do expediente e eu dirigir trinta minutos para chegar em casa às seis e trinta e jantar em trinta minutos e ver TV por vários trinta minutos e me lamentar por trinta minutos por mais um fim-de-semana sem sentido cheio de trinta minutos sem paixão antes de dormir.
07/01/05
SEMI-ÁRIDO
O menino com o pé na rua deserta
procura emoção
sem chamar por ela.
Precisa
e não precisa
do Outro.
O menino caminha.
Ardem suas costas
áridas.
Além do perto
talvez haja...
No entanto, o perto
o pó
o menino
o passo
deveriam
bastar?
Não...
É preciso emoção.
Pássaros
sobre passos
que passarão.
02/02/05
TIÊ SANGUE NA POUSADA DA FLORESTA
O poema
chama
das matas
(promessa de novo dia)
Oceano
verde
e vasto
ronrona.
Pingos de sol
na água.
Andorinhas
recurvam a tarde.
Esfria.
Ilha Grande, 06/02/05
DO SONHO BESTA
Sim, terei um apartamento mínimo
todo meu
só meu
inteiramente meu...
Para que eu possa
reunir todos os amigos que não tenho
e jogar pôquer.
21/02/05
ESCRIT-ÓRION
Uma mesa e uma tela
uma musa:
uma janela.
24/02/05
DO ESCREVER
Mais importante do que saber a origem arcaica das palavras
seus múltiplos significados e traduções
suas rimas e ritmos
é ter algo a dizer
com paixão.
27/02/05
(Fabio Rocha)
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